segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Entretanto, na Biblioteca Pública de Évora...

... rezamos para que, apesar da seca, o inverno não venha chuvoso, sob pena de o telhado e tudo o que ele cobre não chegarem a ver a Primavera.


A grande notícia do verão em matéria cultural foi anunciada na Biblioteca da Ajuda pelos ministros da Cultura e dos Negócios Estrangeiros. Portugal foi o país convidado da Feira do Livro de Guadalajara, segunda cidade do México, em 2018. Manuela Júdice, militante do Partido Socialista e ex-diretora da Casa Fernando Pessoa, já aceitou o convite para comissariar tal iniciativa e vai procurar gerir um orçamento de dois milhões e meio de euros. Não vai ser fácil fazê-lo, adiantou. A Itália, convidada em 2008, gastou três milhões. Portugal fica reduzido a urna verba inferior, o que em si mesmo é um problema, pois há tanta coisa para mostrar.
Não só os livros, mas também a música e todas as artes. Um autêntico festival, a pretexto do livro! Porém, mesmo contando com os sacrifícios impostos por uma verba aparentemente modesta, valerá a pena apertar o cinto e seguir em frente.
Os editores já manifestaram o seu contentamento com mais esta iniciativa. A memória da participação de Portugal na Feira de Bogotá, em 2013, ainda está fresca, pelo menos para uns quantos que lá foram. E os que não foram, bem teriam gostado de ter sido incluídos no convite.
Talvez surja agora a oportunidade de seguir viagem e participar no cortejo... Nunca se sabe. De tudo isto tornei conhecimento através da leitura de um artigo objetivo, sem ponta de ironia, publicado no jornal "Público" (26/7/2017).
Ao lê-lo, lembrei-me do "Anatómico Jocoso" de Frei Lucas de Santa Catarina. É que o carácter insólito da notícia mais parecia uma conversa de além-túmulo que, se não me falha a memória, se encontra na obra do famoso académico setecentista. Também me passaram pela cabeça as paródias no género Popular de testamentos da velha, de que há exemplos na coleção de folhetos dos séculos XVII e XVIII que D. Carolina Michäelis gostava de consultar na Biblioteca da Ajuda. Imaginei, então, o cortejo para Guadalajara. A sua organização, sem miserabilismos nem coisas chilras, pelo contrário, tudo à grande e à tromba estendida. O elenco, as precedências, os salamaleques, os favores e o pagamento dos fretes.
O recurso, a preceito, a agências especializadas na organização de festivais, com concursos feitos à pressa. Os escritores, os intelectuais e alguns, raros, pensadores que não param de pensar, mesmo em bolandas, conforme a imprensa tem noticiado, nos últimos tempos. Mas quem irá escolher os felizardos que, com um sombrero na cabeça, irão cantar em uníssono La Cucaracha? A comissária? E qual o critério para o fazer? Vão os que se oferecerem primeiro? Proximidade política? Amizades? A qualidade da obra acima de tudo? O certo é que, no couce do cortejo, em lugar de honra, lá irão os dois ministros, contentíssimos, porque foram capazes de satisfazer alguns grupos de pressão da área da cultura. Mas o seu a seu dono, pois foram eles, os ministros, que desencantaram os dois milhões e meio de euros necessários para pagar as viagens e a organização do certame.
Porquê toda esta azáfama para seguir viagem? Porque se impõe dar corpo a uma cultura do espetáculo, áulica e de circunstância.
Uma política cultural que, na boa tradição do Estado Novo, aposta no foguetório das comemorações e das exposições, a pretexto da inevitável internacionalização, e do espanto que conseguirá causar lá fora. E que, ao mesmo tempo, descura, no que ao livro diz respeito, tudo o resto: bibliotecas, arquivos, defesa do património bibliográfico e incentivos à edição, ligação às escolas ou aos museus e suas respetivas livrarias, etc. Em tudo isto, pressente-se o esbanjar à tripa forra e à pressa, através de comissões, comissários políticos e contratos excecionais.
Tudo ao revés de uma política que dinamize as instituições e os que a elas se dedicam no quotidiano.
Com todas as letras, o que mais me choca é, sobretudo, que não exista uma política de valorização de quem trabalha nessas mesmas instituições. Que se contentem com a segurança do funcionalismo público, fora do mundo da precariedade, todos os que contribuem com o seu esforço para fazer, no dia a dia, essas mesmas instituições. Quanto ao resto, que se danem com ordenados de miséria, sem progressões, sem formação, sem condições para a passagem do testemunho em instituições que têm uma vida própria que não pode ser descontinuada.
Sem cheta! É a política do banquete numa sociedade onde se tem fome.
O esbanjar no acontecimento único, mas sempre com a capa do queixume de que até se trata de uma verba parca, muito limitada: a viagem para Guadalajara! O facto de dois ministros virem à Biblioteca da Ajuda agora sob a alçada do palácio com o mesmo nome e, cá para mim, em risco de ser desmantelada para servir de cenário para eventos de encher o olho anunciar que vão ser gastos uns escassos dois milhões e meio no cortejo de Guadalajara é uma suprema ironia. Nos tempos difíceis em que vivemos, haveria que definir as prioridades. E o mais escandaloso é que não se consiga compreender qual o sentido dessa mesma iniciativa, no interior de uma estratégia relativa à política cultural do livro e sua internacionalização. Que fique também claro o paradoxo: Foi na Biblioteca da Ajuda que se anunciou o fim do miserabilismo e o retomar de uma cultura do foguetório, mas é também nela que se rapa, no inverno, um frio insuportável.
Quem lá quiser ir ler as obras do dito Frei Lucas tem de ser o primeiro a montar-se a cavalo no único aquecedor a óleo da sala de leitura. Há anos que a mesma biblioteca, segundo os caprichos e a profunda ignorância de sucessivos governos, está descapitalizada, sem quadros, sem uma política séria de catalogação, sem vida. Uma vergonha frente a um património de livros e manuscritos que já esteve sob a direção de Ramalho Ortigão e onde a erudita Carolina Michäelis trabalhou.
Poderia acrescentar outras coisas do que haveria a fazer, a começar pelo abandono a que foi votada a rede de leitura pública, num país que continua a ter enormes problemas no acesso ao livro e à leitura. Comparem-se também as dotações orçamentais da Torre do Tombo e da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas com os dois milhões e meio para Guadalajara, para perceber o descabido que está em causa. O mesmo se passa malgrado a extrema competência, com provas dadas, da sua dinâmica diretora e do seu excelente corpo de bibliotecários e funcionários com o abandono em que se encontram o restauro e a encadernação na Biblioteca Nacional, sem esquecer a crónica falta de verbas para a compra de livros. Outro sinal de bandalheira é o triste esquecimento a que tem sido votada a Biblioteca Pública de Évora, com uma coleção de manuscritos que só por si poderia projetar Portugal internacionalmente, mas com certeza sem espalhafato.
Não basta reconhecer que o funcionamento do mercado do livro e das artes necessita do apoio do Estado, é preciso agir com sentido estratégico. E quais são os programas de apoio à edição e à tradução? Qual a política de apoio ao livro português no Brasil e na América Latina? Não se sabe e, a julgar pelo que se vê em Luanda ou em Maputo, essa política não existe. Não vai além de um paleio estafado acerca da lusofonia e do diálogo de culturas que, à força de tanta repetição, já parece ter vida própria em discursatas oficiais.
Depois, esvai-se como fumo... Enfim, a falta de intervenção política em todas estas matérias só a muito custo pode encontrar compensação no foguetório - ou, melhor, no happening, para ir ao encontro da famigerada internacionalização - constituído pela organização do cortejo para Guadalajara.
Autor: Diogo Ramada Curto

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