segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Ideologias ou a falta delas

 

Ainda é cedo, ainda está quente, mas o resultado eleitoral de ontem começa a ser um sinal do quase desaparecimento da ideologia política. 
 
1. Marcelo é a cara mais simpática dessa ausência de ideologia. Bem com Deus e a dar dois dedos de conversa ao diabo, não vá o dito cujo tecê-las. Eleito após anos e anos de homilia dominical, onde punha em prática este "pode ser, mas também pode não ser". Reeleito após 5 anos de selfies, muitas medalhas e presenças na primeira linha dos acontecimentos (muitas vezes a dificultar os trabalhos, mas a ele tudo se perdoa). 
 
2. Ana Gomes não merecia, pelo que já fez ao longo da sua vida, sobretudo no episódio de Timor, ter que andar a disputar votos com cretinos, mas eis que aí está. A colagem a Sócrates nunca mais a abandonará e pagará esse preço para sempre, fazendo esquecer o resto. Teve nesta campanha um acto de coragem admirável, que pouquíssimos ousariam ter: escolheu Paulo Pedroso para mandatário. Esquecido, apagado da história do PS, para sempre abandonado nas catacumbas mais negras do partido (ele sim, mas Ferro Rodrigues não), foi agora resgatado por alguém disposto a pagar o preço de mostrar solidariedade a um companheiro. Quantos o fariam, por mais que acreditassem na inocência do acusado? Bem poucos.
Queira o PS ou não, Ana Gomes era a legítima representante ideológica do partido, mas nem isso lhe valeu o apoio socialista. Liberdade de voto e um olho piscado a Marcelo. Para onde foi a ideologia do PS? Para parte desconhecida, no mesmo lugar onde se encontram os votos da maioria socialista do Alentejo. Se o PCP perdeu votação, que dizer do PS, completamente pulverizado? "Ah, mas o PS não tinha candidato próprio". Ter, tinha, mas a ausência de ideologia permitiu que se votasse com menos problemas de consciência no candidato apoiado oficialmente pelo CDS e pelo PSD do que na candidata ideologicamente socialista. 
 
3. João Ferreira viu desaparecer o voto de protesto. O voto de oposição, de reivindicação, de contra poder, fugiu para o cretino e ficou só um combinado algo estranho: o voto marcadamente ideológico que votará sempre nos candidatos da área da CDU; e o voto da esquerda que acompanhou a campanha e escolheu o candidato mais sereno do leque disponível (o mesmo se aplica a Mayan na direita) ou que, compreendendo as ordens do PS para não votar Ana Gomes não prescindiu de votar na esquerda. 
 
4. Também Marisa Matias perdeu o voto de protesto. Ideologicamente mais frágil, o eleitorado do BE evaporou-se para outras áreas. Não fosse a guerra do batom o resultado teria sido muito pior. Se o escrutínio fosse possível, apostaria numa larga maioria de eleitorado feminino entre os votantes de Marisa porque essa foi a única componente de protesto que se manteve. 
 
5. Tiago Mayan só conseguiu manter os votos ideológicos e de uma direita que não se revê em Marcelo. É, em espelho, o equivalente a João Ferreira. 
 
6. Vitorino Silva não tem, nem nunca terá, condições para ser Presidente da República. É a piada do sistema, mas é ele que se coloca nesse papel. Levá-lo a sério é penoso porque não tem ideologia nem programa. Se nisso é igual ao cretino, falta-lhe a facilidade de comunicação e o raciocínio rápido, aliado à ausência dos meios de comunicação social no intervalo entre eleições. 
 
7. O cretino beneficiou de tudo isto. Anos de exposição mediática a defender um clube de futebol deram-lhe um traquejo na comunicação social só comparável ao de Marcelo, mas em versão mal-educada. Acolheu os votos de protesto de milhares de cidadãos sem ideologia própria que votavam em quem se opunha ao Governo (encarnação do Estado) e capitalizou revoltas, angústias e cansaço de um interior abandonado à sua sorte, que vê o Estado/Governo fechar ou privatizar sucessivamente escolas, postos de saúde, postos de segurança, postos de CTT e redes de comunicações, com a desculpa de contenção de despesas e depois vê pessoas sem trabalho, a receber sem produzir. Não interessa que circunstâncias levaram essas pessoas so estatuto último e humilhante de beneficiários do RSI. Ninguém quer saber, porque também ninguém está verdadeiramente interessado em saber. Estão todos distraídos a cavar trincheiras dos lados de uma barricada que não existia. Compreender a política, o perfil social e económico das opções de esquerda e direita não é opção, dá demasiado trabalho e por isso foi tão fácil seguir, quais ratos de Hamelin, o flautista que lhes tocava música. 
 
8. Os partidos políticos que não apresentaram candidato bem podem colar-se à vitória de Marcelo, mas não pega. O CDS está completamente moribundo, mas a família decidiu não lhe contar ainda. O PSD segue o mesmo caminho e Rui Rio, ontem à noite, fez o favor de carregar no acelerador. Perder-se em congratulações com a perda de eleitorado comunista no Alentejo (deve ser a 18a vez que ouço dizer que o PCP perdeu o Alentejo em actos eleitorais, mas pelos vistos, volta sempre a recupera-lo, porque nas eleições seguintes volta a perde-lo outra vez), encarando os resultados de Marcelo como sendo do PSD... até o cretino se sentiu na obrigação de lhe explicar que os primeiros a ser engolidos serão eles.
É que o cretino estudou bem as lições de Trump e Bolsonaro e por isso sabe que lhe falta algo essencial: uma estrutura partidária a sério. O chega é um saco de gatos selvagens, interesses próprios de enriquecimento apressado e jamais conseguirá organizar-se de forma estável. Para isso, precisa do PSD, que será rapidamente colonizado, se assim o permitir. 
 
Resta saber se a esquerda saberá fazer-lhe frente, ou se se perderá em "liberdades de voto", preciosismos de "eu é que fui a autora da proposta" e outras idiotices pouco ideológicas.


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