Rua Serpa Pinto, Moura, anos 80. A minha casa era mais ou menos a meio da rua, do lado esquerdo. |
Na casa onde vivi até aos meus 12 anos, as paredes eram muito grossas. No
vão criado para que se abrissem as janelas, o meu pai pôs um banquinho de
madeira para onde nós subíamos, especialmente na janela da sala, que era a mais
alta. Eu utilizava esse recanto para ler. Sentava-me no banquinho, encostada
àquela zona onde a parede era mais fina, e abrigada pelo cortinado, isolava-me
do mundo.
Num desses muitos dias, já perto da hora do almoço, estava a
acabar de ler um livro. A três ou quatro páginas do fim, ouço a voz da minha
mãe, lá ao fundo do corredor.
- Zélia, vem almoçar!
- Vou já, mãe!
Três páginas para o fim, ninguém me tira daqui enquanto não
acabar o livro. Acelerei o passo dos meus olhos, da esquerda para a direita, da
esquerda para a direita, cinco linhas, quatro linhas, três linhas, a ponta do
polegar e do indicador já nervosas ao canto da página, prontas para a virar
assim que os meus olhos terminassem o percurso. Penúltima linha, última linha,
guarda bem a última palavra, vai fazer-te falta para continuares a história e
zás! Os dedos passam a página, a mão estende-se sobre ela. Os olhos retomam o caminho,
como um carro a aquecer o motor. Primeira linha, segunda, terceira, já estou
em velocidade cruzeiro. Da esquerda para a direita, da esquerda para a direita,
vou devorando as linhas sem saborear convenientemente as palavras e outra vez a
voz da minha mãe.
- Zélia!
- Estou a acabar, vou já.
Sei que ainda tenho algum tempo. Enquanto devoro palavras
imagino a minha mãe a sentar-se calmamente à mesa, enquanto o meu pai corta
aquelas fatias de pão finas e certinhas que só saem das mãos dele. Na rua passam pessoas, tagarelam, nem imaginam que eu estou a ler ali, naquele ponto da rua, do lado de lá, onde a parede é mais fina por causa da janela.
Os olhos já
se levantam para a outra página, recomeçam o caminho, a mão direita já se vai
aproximando devagarinho do canto da folha. A última folha. A minha mãe está a
esta hora a distribuir a comida pelos pratos e a minha irmã a pegar nos talheres. Outra
vez a contagem decrescente, seis linhas, cinco linhas, quatro linhas. Outra vez
os nervos miudinhos na ponta dos dedos e outra vez a última palavra. Viro a
folha, que desilusão… nem meia página para ler e aquela palavra irritante já a
dançar à frente dos meus olhos: “FIM”.
Volto à primeira linha, sei que estou a esticar
a corda, não tenho tempo de me insurgir contra o fim dos livros. Os olhos vão
agora menos depressa. Já sinto saudades e nem vou ter tempo de pensar no livro,
fazer-lhe aquela espécie de luto, porque tenho de ir a correr almoçar.
Finalmente a última linha. Pensarei no livro durante o
almoço. Enquanto o resto da família estiver à conversa eu ficarei sossegadinha a digerir o
que acabei de ler. Fecho o livro e pouso-o no banco, a mão direita já se
encaminha para abrir o cortinado. Mas ele abre-se sozinho. À minha frente está
o meu pai.
- Não ouviste chamar?
Na verdade, passei o almoço calada, mas não estava a pensar no livro. Estava amuada
com o incentivo de uma bela palmada a que não consegui escapar. Tudo tem um preço… ;)
Zélia, também levei uma chapada numa situação parecida, mas o meu pai nem sequer avisava, o teu ainda perguntou: "Não ouviste chamar?"
ResponderEliminarOs meus pais encontravam-se frequentemente com amigos no café. A única maneira de eu e o meu irmão aguentarmos aquela chatice das conversas de adultos, era a ler o Tio Patinhas. Quando eles se levantavam para ir embora, tínhamos de interromper a leitura naquele segundo.
Um dia, porém, quando os adultos se levantaram, eu tinha ainda 2 (dois!) quadradinhos para ler até ao final de uma história. Não sei se disse já vou, se até mostrei o que me faltava ler. A chapada veio sem aviso, como sempre!
De qualquer maneira, viva o livro infantil!
O livro é sempre um bom companheiro e fiel.
ResponderEliminarE que belo texto nos trouxeste hoje!!
Beijos,
Sem dúvida ler revitaliza a alma mas também não nos podemos esquecer que tão importante como o livro que tem um dia para si, é também o dia dos anos do Pedrocas... :)
ResponderEliminarIsso é amanhã, Sara. Por isso é que já falei do dia internacional do livro infantil hoje :)
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