“Felizmente existem os livros. Podemos esquecê-los numa prateleira ou num baú, deixá-los entregues ao pó e às traças, abandoná-los na escuridão das caves, podemos não lhes pôr os olhos em cima nem tocar-lhes durante anos e anos, mas eles não se importam, esperam tranquilamente, fechados sobre si mesmos para que nada do que têm dentro se perca, o momento que sempre chega, aquele dia em que nos perguntamos, Onde estará aquele livro (...), e o livro, finalmente convocado, aparece. Está aqui.”
“Não serve a mesma [leitura] para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam apegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa, [...], A não ser que esses tais rios não tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que terá de chegar.”
José Saramago, A Caverna
Foi talvez o seu livro que tive mais dificuldade em ler. Lembro-me que esteve parado na minha mesa por mais de um ano. De alguma forma sentia que não estava pronta, que precisava de mais algum tempo. Depois, um dia, uma vida depois, noutra margem, recomecei.
Cruzei-me com muitos leitores incapazes de ler Saramago. Embora não tenha lido nem metade da sua obra, fiquei para sempre preenchida com o Memorial do Convento e para sempre recordarei a angústia, a revolta, a indignação que me sufocou nos dias seguintes à leitura do Ensaio sobre a Cegueira e do Ensaio sobre a Lucidez. Não li nada do que escreveu depois disso, nem sei quando lerei. Ainda não é tempo.
Morreu uma figua impar da nossa Literatura e da Literatura Universal,autodidacta, figura que o mundo irá recordar, ao contrário de Cavaco Silva, que primou pela ausência no funeral, um gesto maior de uma figua menor do nosso panorama, um homem a quem a cultura atrapalha um pouco. Saramago era um homem do debate da controvérsia, da provocação, mas defendia aquilo em que acreditava como poucos. E goste-se ou não revolucionou a escrita e o estilo literário, e à boa maneira portuguesa é mais apreciado no estrangeiro do que em Portugal. Podiamos sobreviver sem a literatura de Saramago? Podíamos, mas não era a mesma coisa
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