sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Os indiferentes




Os Grandes Indiferentes

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia 
Tinha não sei qual guerra, 
Quando a invasão ardia na cidade 
E as mulheres gritavam, 
Dois jogadores de xadrez jogavam 
O seu jogo contínuo. 

À sombra de ampla árvore fitavam 
O tabuleiro antigo, 
E, ao lado de cada um, esperando os seus 
Momentos mais folgados, 
Quando havia movido a pedra, e agora 
Esperava o adversário. 
Um púcaro com vinho refrescava 
Sobriamente a sua sede. 

Ardiam casas, saqueadas eram 
As arcas e as paredes, 
Violadas, as mulheres eram postas 
Contra os muros caídos, 
Traspassadas de lanças, as crianças 
Eram sangue nas ruas... 
Mas onde estavam, perto da cidade, 
E longe do seu ruído, 
Os jogadores de xadrez jogavam 
O jogo de xadrez. 

Inda que nas mensagens do ermo vento 
Lhes viessem os gritos, 
E, ao refletir, soubessem desde a alma 
Que por certo as mulheres 
E as tenras filhas violadas eram 
Nessa distância próxima, 
Inda que, no momento que o pensavam, 
Uma sombra ligeira 
Lhes passasse na fronte alheada e vaga, 
Breve seus olhos calmos 
Volviam sua atenta confiança 
Ao tabuleiro velho. 

Quando o rei de marfim está em perigo, 
Que importa a carne e o osso 
Das irmãs e das mães e das crianças? 
Quando a torre não cobre 
A retirada da rainha branca, 
O saque pouco importa. 
E quando a mão confiada leva o xeque 
Ao rei do adversário, 
Pouco pesa na alma que lá longe 
Estejam morrendo filhos. 

Mesmo que, de repente, sobre o muro 
Surja a sanhuda face 
Dum guerreiro invasor, e breve deva 
Em sangue ali cair 
O jogador solene de xadrez, 
O momento antes desse 
(É ainda dado ao cálculo dum lance 
Pra a efeito horas depois) 
É ainda entregue ao jogo predileto 
Dos grandes indif'rentes. 

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida. 
Os haveres tranqüilos e avitos 
Ardem e que se arranquem, 
Mas quando a guerra os jogos interrompa, 
Esteja o rei sem xeque, 
E o de marfim peão mais avançado 
Pronto a comprar a torre. 

Meus irmãos em amarmos Epicuro 
E o entendermos mais 
De acordo com nós-próprios que com ele, 
Aprendamos na história 
Dos calmos jogadores de xadrez 
Como passar a vida. 

Tudo o que é sério pouco nos importe, 
O grave pouco pese, 
O natural impulso dos instintos 
Que ceda ao inútil gozo 
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo) 
De jogar um bom jogo. 

O que levamos desta vida inútil 
Tanto vale se é 
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida, 
Como se fosse apenas 
A memória de um jogo bem jogado 
E uma partida ganha 
A um jogador melhor. 

A glória pesa como um fardo rico, 
A fama como a febre, 
O amor cansa, porque é a sério e busca, 
A ciência nunca encontra, 
E a vida passa e dói porque o conhece... 
O jogo do xadrez 
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco 
Pesa, pois não é nada. 

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam, 
Com um púcaro de vinho 
Ao lado, e atentos só à inútil faina 
Do jogo do xadrez 
Mesmo que o jogo seja apenas sonho 
E não haja parceiro, 
Imitemos os persas desta história, 
E, enquanto lá fora, 
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida 
Chamam por nós, deixemos 
Que em vão nos chamem, cada um de nós 
Sob as sombras amigas 
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez 
A sua indiferença. 

Ricardo Reis, in "Odes" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

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