domingo, 2 de maio de 2010

Lisboa Revisitada

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!


Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos, 1923

Aviso à navegação: Este poema traduz na íntegra o que sinto em muitos momentos. Este não é um deles, e isto não é nenhum recado directo ou indirecto a ninguém. É simplesmente um poema lindíssimo, que um leitor habitual nas actividades da Feira do Livro me leu há dias junto ao balcão. Obrigada, gostei muito.

3 comentários:

  1. "Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade." (??). Não me parece.
    Faça-se aquilo que se fizer haverá sempre, em algum momento, alguém a apontar o dedo. Como tal, o melhor é ninguém se maçar muito com as opiniões alheias...Até Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela foram, um dia, apontados e rejeitados. :)

    RS

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  2. AH, Grande MULHER!

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  3. Muitas vezes, temos a sensação que podemos desenvolver tantos heterónimos quantos os nossos estados de espírito. Podemos andar em círculos, mas ninguém foge à sua natureza. A essência, seja ela qual fôr, está sempre intacta:

    Quero dos Deuses só que me não Lembrem

    "Quero dos deuses só que me não lembrem.
    Serei livre — sem dita nem desdita,
    Como o vento que é a vida
    Do ar que não é nada.
    O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
    Cada um com seu modo, nos oprimem.
    A quem deuses concedem
    Nada, tem liberdade."

    Ricardo Reis, in "Odes"
    Heterónimo de Fernando Pessoa

    http://www.youtube.com/watch?v=DR91Rj1ZN1M

    Red S

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