No tempo em que as viagens a Lisboa aconteciam uma vez por ano, envolviam sempre um elaborado ritual de preparação. A saída de Moura tinha de acontecer antes das seis da manhã e obrigava a paragens nos "Parques de merendas" para comer o farnel que vinha de casa,. Quando finalmente avistávamos a ponte 25 de Abril, sabíamos que o Alentejo ficara para trás e que à nossa frente se estendia um mundo completamente novo e diferente.
De repente, de todos os lados apareciam carros. Verdes, vermelhos, azuis, amarelos, táxis em louca correria e ultrapassagens duvidosas, gente aborrecida e com cara de sono ao volante, contrastando com os nossos olhos que não tinham tempo para ver tudo, assimilar tudo, memorizar tudo.
O pagamento da portagem, o olhar para o Cristo-Rei, o som seco do carro a deixar o alcatrão em terra firme para entrar, finalmente, na ponte. O nervoso miudinho a antecipar a entrada em Lisboa fazia-se sentir ao ritmo daquele barulho característico dos pneus sobre a grelha metálica da Ponte 25 de Abril.
Lá em baixo, a enorme massa de água que leva o Tejo do seu estuário até ao mar e ao fundo, do lado esquerdo, o perfil da Torre de Belém, onde a minha família viveu um dos momentos mais caricatos de sempre, daqueles que são contados uma e outra vez nas reuniões familiares.
E depois: "Tomem atenção às placas!", "Não façam barulho agora, o vosso pai não se pode enganar no caminho", "Olha, o Marquês de Pombal é para ali, vira agora, vira agora..."
Enfim, chegávamos à Baixa. A nossa grande amiga de sempre trabalhava ali, numa espingardaria, na esquina da Rua da Betesga com a Praça da Figueira. Era atrás do seu passo rápido que percorríamos Lisboa, à caça dos melhores artigos, a preço de saldo. Mesmo fora da época, ela entrava nas lojas e cumprimentava as funcionárias com aquele sotaque arrastado de Aldeia Nova de S. Bento aclimatizado a Lisboa: "Então, estás boaaaa? Olha, trouxe aqui umas amigas, vêm fazer umas compras, mas tu fazes-lhe uns preços jeitosos, está beeeem? Preço de saldo!"
E, com tratamento VIP, lá íamos nós de loja em loja, de armazém em armazém. Rua Augusta, Rua do Carmo, Praça da Figueira, Armazéns do Chiado, o Grandella, nós estafadas e a Maria sempre com o seu passo rápido, olhava para trás e dizia: "Então, não andam mais depressa? Ai, filha, faria se tu tivesses as pernas como as minhas..."
A ponte 25 de Abril fez hoje 44 anos. Estima-se que passem sobre o seu tabuleiro, diariamente, sete mil carros, nos dois sentidos, só na "hora de ponta". Em média, tem cerca de 300 mil utilizadores diários, a que se juntam mais de sessenta mil pela via ferroviária.
O incêndio do Chiado aconteceu há 22 anos, a 25 de Agosto. Nesse dia em que tudo ardeu, a nossa visita anual a Lisboa já tinha acontecido. Enquanto ouvíamos a Maria chorar do outro lado do telefone, a nossa mente revivia os lugares, as pessoas, as vidas subitamente transformadas em tragédia.
Mais do que os santos populares, mais do que o tempo que já ali passei, mais do que a frequência com que agora vamos a Lisboa, é Agosto que me faz sentir também, um pouco lisboeta.
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
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