quarta-feira, 7 de julho de 2010
50 ºC ao sol
"Isto é uma aula de emagrecimento pós-moderno, perdem-se cinco a seis quilos por sessão." Na Casa do Povo da Amareleja está um grupo de senhoras de caderno e leque na mão. Riem-se com a brincadeira do professor António Revez para desatarem no típico tagarelar alentejano. Não fosse a ventoinha, suariam ainda mais, e a verdade é que não estão ali para entrar na linha - é uma das últimas sessões da formação em jardinagem, já a preparar a cerimónia de encerramento na próxima sexta-feira. É também uma das poucas coisas a acontecer na Amareleja. Passa pouco das 15 horas. O i foi visitar a vila famosa pelos recordes de temperatura - o último, confirmado pelo Instituto de Meteorologia, foi em 2003, com 47,3 oC. Ontem, pelo segundo dia consecutivo, o já emblemático mostrador da Farmácia Portugal, no centro da vila, atingiu os 50 oC por volta do meio-dia.
Chega-se pela Estrada Regional 385. O termómetro do carro aponta 42 oC, sempre a subir desde Évora. A vila está completamente deserta e à partida não dá para perceber se por falta de gente ou por reclusão. O professor Revez deixa interromper a aula. "Não digo que não marcasse os 50 oC, mas não é verdade de certeza absoluta", atira Maria Angelina Carreteiro, 50 anos. É que se tivesse sido, e isto é de gente que sabe, não se aguentava sair de casa, e elas estão ali.
"Foi sempre assim, os antigos ainda sofriam mais do que nós. Eu ainda andei no calor no campo, de xaile, lenço e manguitos. Agora é que estranhamos o calor", acrescenta Joaquina Piriquita, 51. No lar do centro social da Amareleja, paredes-meias com a casa do povo, o fresco vem das portadas fechadas.
Marcolino Correia, 83 anos, aceita falar. Passa os dias entre cassetes de música, auscultadores à séria e desenhos de mulheres que começam sempre com uma lembrança da sua. Saiu da Amareleja aos 20 e voltou em 2000. "O calor a gente já não sente, mas antes o que havia era mais chuva. Carregávamos os fardos de palha debaixo de chuva e trovoada; agora chove pouco ou nada."
É difícil encontrar gente nova, apesar de serem cerca de dois mil habitantes. A vila tem escola básica, mas depois segue-se para Moura. E de qualquer forma é o início das férias. "Quem pode vai para o estrangeiro. Quem fica pega pelas 6 horas, agora anda-se na apanha do melão e da melancia para os lados do Alqueva", explica Joaquina Piriquita.
Já a mais velha toda a gente sabe quem é: Chica Ramos. O genro Marcelino Botelho, 75 anos, é o anfitrião da casa. Durante anos foi o único barbeiro na vila, agora há um cabeleireiro moderno em frente à Farmácia Portugal.
O negócio vai estando parado, sobretudo na hora de maior calor, e muitos vêm pelo pente zero, que demora a crescer, ri. "Lembro-me de um domingo há 15 anos, acho que foram 48,7 graus, estava na pesca e os peixes nem se mexiam dentro de água", conta numa sala adaptada a barbearia, com uma cadeira das antigas ao centro. "Lembro-me de haver dias de muito calor e muito frio, até de cair neve aí nos anos 40, e isso nunca mais aconteceu. E quando era Verão, era Verão", remata. "Até havia aí um ditado quando se queria castigar alguém: 'O que te desejo é seis meses iguais aos de Agosto'."
Chica Ramos, 98 anos feitos em Junho e que na realidade se chama Francisca Guinapo Arranjado - na vila ninguém se conhece pelo nome próprio, explicam-nos - domina outras expressões. "Com o calor dava o preto a muita gente", explica. "Já eu nunca perdi o algarismo" - nunca desmaiou. E fala da doença de Parkinson quase como se não fosse sua, com uma idade invejável. "O calor? Eu já não tenho idade para aguentar nada", brinca. Mas tem, só que o calor não a deixa sair de casa para se distrair com a "conversinha do passado." Dantes ia para a rua; agora não acha posição em casa, apesar de um dos segredos ser manter tudo fechado como a encontramos, às escuras no sofá da sala. "Íamos mal vestidas, deitávamo-nos no chão, ao pé da porta da rua, comíamos gaspachozinhos."
Pôr cestas com comida a refrescar dentro dos poços é outra das coisas de antigamente: agora o pior é quem não tem ar condicionado e se contenta com a ventoinha.
A tarde vai correndo. O termómetro do carro mantém os 42 oC já bateram as seis da tarde.
Domingos Silva, 84 anos, também a não parecerem, passa apressado à frente da Farmácia Portugal. "São quase dois quilómetros que faço de casa até ao centro e com este calor não há ninguém a quem dizer bom dia ou boa tarde", puxa conversa.
Mas é falta de gente? "Não, está tudo em casa à espera que a sombra tape as ruas. Tinha de ver nas festas de Agosto, nem se consegue andar aqui", garante. Diz que dali a duas horas vão estar uns 50 a jogar malha ao pé da torre do relógio, o momento de convívio de todos os dias.
"50 oC? Eu nem olho para o termómetro. Estive em Lourenço Marques, com 50 oC as galinhas morriam nas capoeiras. Para a agricultura é menos mau, as searas só se vão com gelo. E nós estamos aclimatizados."
Nós não. "Que calor", dizemos.
"Aqui diz-se 'que calma'", responde.
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